É compreensível que para pouparmos palavras nos tenhamos habituado durante a pandemia a falar em celebrações religiosas/missas/serviços de culto online. O problema é que se abdicarmos de algum o rigor com os termos acabamos, bem intencionadamente, a tratar mal o assunto. Com tanta coisa a encerrar durante o último ano, a religião resistiu. A verdade é que os religiosos, fazendo por manter activo o seu credo durante esta crise, podem contribuir para confundi-lo com o que ele não é, se não se derem a algum trabalho de explicação. E não compreender a religião não faz bem nem a crentes nem a descrentes, seja em 2020, em 2021 ou noutro ano qualquer. Daí o esforço deste texto.
Vejamos rapidamente aquilo que os cristãos acreditam que está a acontecer quando se juntam na sua cerimónia religiosa (o termo “cerimónia religiosa” é vago e irritante mas serve agora para o efeito). E, para que fique claro o que os cristãos acreditam que acontece quando celebram juntos, convém fazer uma distinção importante entre duas tradições históricas da cristandade: Católicos e Protestantes (os Ortodoxos estão fundamentalmente de acordo com os Católicos nesta questão). Católicos juntos têm uma missa. Protestantes juntos têm um serviço de culto (termo genérico tendo em conta a grande diversidade dentro do movimento Protestante onde, por exemplo, a palavra “missa” poderia ser usada por Luteranos).
Quando Católicos têm uma missa, o que de mais importante acontece é a convicção de que quando a Eucaristia é celebrada (a hóstia comida e o vinho bebido), Jesus Cristo está lá mesmo, fisicamente, no pão e no vinho (é isso que a transubstanciação sustenta). Os Católicos acreditam que de cada vez que se reúnem existe um milagre—um milagre mesmo, o fisicamente inexplicável a acontecer.
Quando os Protestantes cultuam (e uso o termo “Protestantes” quando podia usar o termo “Evangélicos”), Jesus Cristo não está lá milagrosamente transubstanciado no pão e no vinho (neste sentido, as celebrações Protestantes não garantem qualquer milagre—o que torna ainda mais irónico que num contexto Católico as pessoas se ofendam com Igrejas Evangélicas que publicitam a possibilidade de milagres quando a missa Católica sempre dependeu da certeza de um estar garantido). Ainda nesta medida, na celebração religiosa dos Protestantes a presença de Cristo é sobretudo garantida pela pregação da Bíblia porque, como explica o início do Génesis, é a palavra que dá origem às pessoas e não o contrário (não é a Igreja que garante o Verbo, Jesus, mas é o Verbo que garante a Igreja). Isto também significa que, comparado com a missa Católica, o culto Protestante não afirma o mesmo tipo de presença física de Jesus; mais até: o culto Protestante, ao mesmo tempo que afirma que Cristo está na Igreja, celebra também a ausência dele (intensificando a espera por um tempo que será muito superior a este por finalmente Cristo estar física e plenamente connosco). O culto Protestante tem um twist dançante entre presença e ausência de Jesus que torna o Protestantismo mais sensível a vias negativas—mas essa é outra conversa.
É preciso dizer sem equívoco que não existem cultos online; quando muito, existe uma transmissão deles via internet.
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O que interessa sublinhar nestas diferenças é o seu consenso: para que Católicos e Protestantes adorem, é preciso presença. Mesmo que debatam os tipos de presença que Cristo pode ter quando os crentes se juntam, Católicos e Protestantes concordam que celebrá-lo implica um carácter físico nos crentes. Porquê? Católicos e Protestantes, ao acreditarem que Cristo ressuscitou, colocam numa realidade física o fundamento da sua adoração, realidade física essa visível no facto de Cristo estar na Igreja e isso convocar a que o crente esteja nela também (também foi nestes assuntos que Jesus andou ao tratar das dúvidas de um Tomé que, não estando fisicamente onde deveria ter estado, andou mais tempo convicto de que Cristo não tinha ressuscitado). Adorar mesmo é estar em carne e osso.
Sem querer apimentar estas linhas, mas tendo em conta que falamos da importância dos nossos corpos, não resisto a uma comparação: um cristão pode tanto ter uma missa ou um serviço de culto em forma online como uma pessoa qualquer pode fazer amor online. Tentar pode, mas suspeito que não é a mesma coisa. É por isso que o Cristianismo é uma fé mais obcecada pelo corpo do que pelas ideias. Ideias podem ser partilhadas à distância mas a fé tem de ser partilhada ao vivo. Escrevo enquanto cristão mas sei que outras confissões religiosas não-cristãs, não tendo o mesmo credo que eu, dependem também de um carácter físico para que as suas celebrações possam ser realmente vividas enquanto tal. Os crentes, independentemente da sua confissão, não estão a ser caprichosos quando procuram que os serviços religiosos se concretizem mesmo: é a própria natureza da celebração que o exige. Nesta medida, é preciso dizer sem equívoco que não existem cultos online; quando muito existe uma transmissão deles via internet.
Numa época em que pareceu mais prudente à maioria prescindir de adorar colectivamente, facilitámos o uso das tais expressões como “missas/serviços de culto/celebrações religiosas online”. O meu propósito neste texto não é questionar a prudência da interrupção passada, mas o modo como o uso irreflectido desta expressão alimenta um conceito errado que, em último grau, impede que crentes e descrentes se compreendam melhor em nova crise de encerramentos ou distanciamentos sociais. Parece-me um erro chegarmos a um ponto em que se pensa que a religião pode ser garantida da mesma maneira que o teletrabalho. Afinal, quando sentimos o prejuízo de a nossa liberdade poder ser legitimamente condicionada, é difícil resistir à tentação de limitar a liberdade do meu vizinho religioso de acordo com critérios não-religiosos. Ou seja, num Portugal em que mais de 70% da população, com viço variável é certo, se diz cristã, o modo como muitos escolherão honrar essa convicção não prescindindo das suas celebrações religiosas pode irritar todos os outros. O problema de equivaler ir à missa/ao culto com ir a um concerto ou outro evento cultural é optar, mesmo que inconscientemente, por ser indiferente a algo tão qualitativamente distinto para uma parte considerável do país que somos.
Honestamente, acho que é inútil tentar convencer uma pessoa sem religião acerca da pertinência de manter as celebrações dela num quadro pandémico destes. No geral, crentes e descrentes discordarão com ou sem pandemia (aliás, crentes já discordam entre si quanto a isto). Mas não é propriamente isso que agora se insinua nas discussões de muita gente. O que está em causa não é tanto concordar se a religião se deve manifestar socialmente quando as distâncias importam (em último grau, essa deve ser uma decisão das autoridades, que, por exemplo, quando foi tomada há perto de um ano, foi prontamente cumprida por todas as comunidades religiosas); o que está em causa é mais se quando me manifesto socialmente uso a religião para criar mais distâncias ainda. Isto vai de crentes para descrentes, e de descrentes para crentes.
Os crentes devem estar prontos para a possibilidade de fechar a porta dos seus lugares de culto, como já aconteceu. Os crentes não devem usar a sua religião para se inconciliarem com quem não crê. Se os crentes, no entanto, não devem querer impôr o seu direito de culto independentemente do que ele pode provocar nos seus e nos outros, o mesmo se aplica a descrentes. Para os últimos gostaria que pudessem ser sensíveis a esta distinção: não crer em religião alguma é uma coisa; outra é não querer compreender aquilo que é específico nela e que, por muito que a cultura ocupe um lugar importante para tantos de nós, não é igual. O que está em causa é, pelo menos, tentar compreender e não necessariamente concordar. Compreender é provavelmente o melhor que conseguimos quando concordar, com ou sem pandemia, já nos parece impossível. Se medirmos as liberdades uns dos outros sem qualquer desejo de querer compreendê-los podemos ter a certeza que a crise de Covid irá muito além de quando já todos estivermos imunes a ele.
Tiago Cavaco
Tiago Cavaco é pastor da Igreja da Lapa, em Lisboa, Portugal. É formado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa.