
Tiago Oliveira
Pastor da Primeira Igreja Baptista de Lisboa e Presidente do Seminário Martin Bucer Portugal.
No início da epístola aos Cristãos da Ásia Menor (Turquia nos dias de hoje), o apóstolo Pedro escreve que a salvação que foi revelada aos profetas do Velho Testamento e cumprida na pessoa de Jesus Cristo são “coisas para as quais os anjos desejam bem atentar” (1Pedro 1:12). A imagem dada pelo apóstolo Pedro revela-nos os anjos nos céus a olharem para o que passa na terra. Imagine-se, seres espirituais perfeitos debruçados nas regiões celestes com atenta curiosidade para aquilo que se passa na terra. Que ‘coisas’ são estas que despertam a curiosidade dos próprios anjos? O que pode levar estes seres celestiais perfeitos a atentar com admiração para o que se passa no planeta terra? Que outro interesse pode despertar a atenção de seres cuja função é o de servir e adorar o próprio Deus? Estas coisas que “os anjos desejam bem atentar” são o cumprimento das promessas de salvação de Deus na pessoa de Jesus Cristo, em particular, diz-nos Pedro, “os sofrimentos que a Cristo haviam de vir e a glória que se lhes havia de seguir” (1Pedro 1:11), aos quais nos referimos como os estados de humilhação e exaltação do Messias.
Quando pensamos sobre os sofrimentos do nosso Senhor Jesus Cristo e a salvação que nos foi dada, é natural pensarmos sobre a sua morte e ressurreição. No entanto, não podemos esquecer que os estados de humilhação e exaltação de Cristo são mais abrangentes. Sendo aspetos centrais, o ministério do Senhor Jesus não pode ser reduzido à sua morte e ressurreição, sob pena de estes perderem o seu significado e efeito. Na epístola aos Filipenses, o apóstolo Paulo escreve que o estado de humilhação do Messias começou na encarnação, no momento em que “esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (Filipenses 2:7).
É na concepção e no seu nascimento que as boas-novas (o evangelho) prometidas ao longo de séculos e de várias maneiras aos profetas do Velho Testamento começam a ser cumpridas. Esta verdade é reconhecida por Isabel que, cheia do Espírito Santo reconhece que o bebé no ventre de Maria é seu Senhor (Lucas 1:43). São as boas-novas proclamadas aos pastores pelos anjos: “eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo, pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo (o Messias), o Senhor” (Lucas 2.10–11).
O próprio Deus desceu à terra na pessoa do Filho. O próprio Deus tornou-se homem para salvar os homens. Por isso, a nossa compreensão do significado da Páscoa começa com a compreensão do significado e necessidade da encarnação. Sem a encarnação não há Páscoa. É necessária uma real, total e perfeita encarnação do Deus-Filho para que a Páscoa tenha valor salvífico. E muitas vezes é esta encarnação que é secundarizada pela própria igreja, como se fosse apenas um apêndice ou um preâmbulo histórico para aquilo que realmente interessa.
Em contraste, a afirmação da completa e perfeita humanidade de Jesus (a encarnação do Deus-Filho) é um assunto de tal importância que o apóstolo João afirma que “nisto conhecereis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus; mas este é o espírito do anticristo, do qual já ouvistes que há de vir, e eis que está já no mundo” (1 João 4:2–3). João não pode ser mais explícito. Contra aqueles que negavam a encarnação do Senhor Jesus Cristo, João afirma que esses mesmo são contra Cristo. Não é possível negar a encarnação sem negar Jesus Cristo.
Por isso, a doutrina da encarnação não é apenas um apêndice na fé cristã. A celebração do Natal não é apenas uma ocasião para juntar a família à volta da mesa. A encarnação do Deus-Filho é tão central no plano de Deus que podemos afirmar que negar a encarnação é negar o próprio Evangelho. Se Jesus não encarnou, a nossa fé é vã, e nós ainda estamos mortos nos nossos pecados. Se a encarnação não foi real, total e perfeita, a Páscoa não tem valor salvífico.
O autor aos Hebreus é claro quando diz que “convinha que, em tudo, fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do povo. Porque, naquilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados.” (Hebreus 2:17–18). Por outras palavras, se Deus-Filho não encarnou de forma real, total e perfeita, então (1) ele não pode ser um misericordioso e fiel sumo sacerdote (não pode ser o nosso mediador); (2) ele não pode expiar os pecados do povo (logo, ainda estamos condenados nos nossos pecados); e (3) ele não pode socorrer-nos nas nossas tentações. A Páscoa estaria esvaziada de conteúdo sem a encarnação.
No contexto evangélico[1], a encarnação do Deus-Filho parece ser um dado adquirido. No entanto, não devemos deduzir que a simples afirmação da encarnação do Senhor Jesus seja suficiente para um bom entendimento do que esta realmente significa. Na realidade, este não parece ser um assunto que tenha merecido a desejável atenção no nosso meio. Neste sentido, as palavras do apóstolo João devem ser um aviso para a igreja. A doutrina da encarnação, pela centralidade que ocupa nos planos de Deus e para a fé dos crentes, foi objecto de ataque desde os primórdios da igreja neotestamentária. De formas mais ou menos subtis, a doutrina da encarnação é negada ou deturpada ainda hoje no seio da igreja. Por isso, é essencial que a Igreja não negligencie o seu ensino de forma intencional, explícita, verdadeira e clara. Ou seja, porque a doutrina da encarnação é necessária, é essencial que que se conheça o seu significado.
Encarnação não é uma palavra Bíblica, mas uma palavra derivada do latim que expressa a verdade bíblica que “o Verbo se fez carne” (João 1:14). O Verbo que estava com Deus e era ele mesmo Deus (João 1:1). O Verbo que criou todas as coisas (João 1:3) “fez-se carne,” ou seja, tornou-se um ser humano. Aquele que era Deus desde a eternidade “esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (Filipenses 2:7). Ao esvaziar-se, Deus-Filho não deixou de ser Deus. Diz-se que Deus-Filho se esvaziou por ‘adição’ não por ‘subtração’, ou seja, à sua natureza divina foi adicionada uma natureza humana. Desde o momento da encarnação, Deus-Filho é Deus e Homem para todo o sempre. Esta união entre a natureza divina e humana é para nós um mistério, no sentido em que a nossa mente não o consegue compreender. Mas, ao mesmo tempo, esta união entre a natureza divina e humana do Senhor Jesus foi-nos revelada e precisa de ser ensinada. Como a igreja tem afirmado ao longo da sua história e de acordo com o ensino das Escrituras, nós cremos em “um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigénito, que devemos reconhecer em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação” (Credo de Calcedónia – A.D. 451)
Por outras palavras, precisamos afirmar e entender que Deus-Filho se tornou um ser humano como nós, excepto no pecado (Hebreus 4.15). Jesus não tinha apenas a aparência de homem. Ele não era parte homem e parte Deus (uma espécie de super-homem). Ele não tinha um corpo humano e uma mente divina. Ele tornou-se completa e perfeitamente homem, sem deixar de ser Deus.
Jesus foi e é perfeita e completamente homem desde o momento da conceção no ventre de Maria, sua mãe. Como Lutero afirmou: “Ele não pairava por aí como um espírito, mas habitou entre os homens. Ele tinha olhos, orelhas, boca, peito, estômago, mãos e pés, tal como eu e tu temos. Ele mamou. A sua mãe amamentou-o tal como qualquer outra criança é amamentada.”[2] Na imagem de intimidade entre uma mãe e o seu bebé, Lutero exprime bem, por uma lado, a realidade da encarnação (o bebé Jesus era mesmo um bebé em tudo o que significa ser bebé!) e, por outro lado, a admiração pelo mistério incompreensível. É o próprio Deus na pessoa do bebé que Maria deu à luz. Deus humilhado, por sua própria vontade e para nossa salvação. Na sua natureza humana, o eterno se torna circunscrito no tempo. O ubíquo circunscrito no espaço. O criador, criatura. O imortal, mortal. O impassível, passível. O autónomo, em total dependência. O todo poderoso em fraqueza.
Conseguimos medir a dimensão desta verdade? Aquele que habita eternamente na luz inacessível (1 Timóteo 6:16) e de cuja glória os anjos cobrem a face (Isaías 6:2), torna-se homem, baixando, por um tempo, a uma condição inferior ao dos anjos (Hebreus 2:9). Como compreender esta verdade? O Filho, Deus eterno com o Pai, tornado inferior aos próprios anjos? Nisto compreendemos a admiração e curiosidade dos próprios anjos face ao plano de salvação de Deus. Os anjos em santo deslumbramento face à multiforme sabedoria de Deus no seu plano para salvar a humanidade.
Conseguimos entender e juntarmo-nos ao espanto angelical pelo privilégio dado aos homens? Deus-Filho torna-se homem para salvar os homens. Este é um privilégio que não é concedido aos anjos! Esta é uma graça da qual os anjos não comungam. Deus não se fez anjo para salvar os anjos. Fez-se homem para salvar a humanidade.
Que neste Natal possamos celebrar a encarnação do nosso Senhor Jesus Cristo e juntar-nos ao espanto e adoração angelical. Que a encarnação do Senhor Jesus Cristo possa ser também algo para o qual queremos bem atentar. Que a celebração da encarnação nos ajude a compreender melhor o sacrifício do nosso Senhor Jesus Cristo. Que o conhecimento da real, total e perfeita encarnação do Deus-Filho nos prepare para celebrar a Páscoa. Porque “para que Jesus pudesse sofrer e morrer, ele tinha de o planear com antecedência porque, enquanto o logos (palavra / verbo) que existia antes da criação, ele não podia morrer – era imortal. Ele não tinha um corpo. Ele não poderia morrer. E, ainda assim, ele queria morrer por ti. Então, ele planeou tudo ao revestir-se a si mesmo de um corpo para que pudesse ter fome, sentir-se cansado e ter pés doridos. A encarnação é a preparação das terminações nervosas para os pregos. Isto é o que a encarnação é. A encarnação é a preparação de uma cabeça para que os espinhos a pudessem perfurar. Ele precisava de costas largas para que houvesse lugar para o chicote. Ele precisava de pés para que houvesse lugar para os pregos. Ele precisava de um ‘lado’ para que houvesse lugar para a lança perfurar. Ele precisava de uma face para que Judas o pudesse beijar e para que houvesse lugar para a cuspidela dos soldados escorrer. Ele precisava de um cérebro e de uma espinal medula, sem vinho misturado com fel, para que o requinte da dor infligida fosse completamente sentida.”[3]
Soli Deo Gloria!
[1] Original: nosso contexto denominacional
[2] Luther, Martin, and Jaroslav Pelikan. Luther’s works, vol. 22 (St. Louis, Miss: Concordia Pub. House, 1957), 113.
[3] https://www.desiringgod.org/interviews/why-jesus-needed-a-body. Traduzido e adaptado.
Este artigo foi originalmente publicado na Revista ‘Lar Cristão,’ nº 186, propriedade da CEBAPES – Centro Baptista de Publicações, Unipessoal, Lda. Usado com permissão.